Sou capaz de começar com uma declaração: eu, João Bastos Vieira de Melo, não tenho tios. Eu sei que é um depoimento que pode levar a diferentes interpretações. “Não tem tios? Isso quer dizer que os assassinou?” “Não tem tios? Isso quer dizer que os pais só tiveram irmãs, e essas irmãs não se casaram?” “Não tem tios? Isso quer dizer que não sabe quem são os pais biológicos, porque o abandonaram nos Bombeiros Voluntários de Albergaria-a-Velha, que por sua vez entregaram-no a um Centro de Acolhimento onde foi abusado e agredido ao longo destes anos, deixando-o com marcas para o resto da sua vida, transformando-o assim, num ser humano resignado e sem força de espírito para conseguir encontrar o rasto da sua família e, com isto, os seus tios?” Creio que a interpretação mais correcta é mesmo esta: não tenho tios, porque tanto o meu pai como a minha mãe são filhos únicos.
Nos tempos que correm ser filho único é perfeitamente normal. As pessoas casam-se mais tarde, têm estabilidade financeira mais tarde e é natural optarem só por ter um filho. Ora, no tempo dos meus pais não era bem assim. Estamos a falar da década de 60. A década onde ter um filho só seria aceitável se estivéssemos a falar no espaço temporal de um ano; a década onde as pessoas jogavam ao bingo, mas com o número de filhos. “Número 27. Alguém tem o filho número 27?”; a década onde a reprodução era de tal maneira elevada, que os nascimentos, em vez de serem documentados pelos médicos, eram documentados pelo National Geographic. Basicamente, toda uma década, de completa cowboyada, onde os meus avós foram as únicas pessoas com a sensatez de pensarem: “isto, se calhar, vai dar jeito para um dos nossos netos escrever no futuro.”
Bem sei que, tanto os meus avós paternos e maternos, não previam que o seu único filho constitui-se família com um sujeito na mesma situação familiar. No entanto, de certa forma, já estou conformado que não tenho tios e que nunca saberei o que é ter tios. Nem sei que tipo de relação se tem com esse parente, daí surgirem várias questões pela qual eu não tenho resposta: como é que é uma relação com um tio? Como nos comportamos ao lado de um tio? É uma relação mais formal que os pais? É uma relação menos formal que os avós? Um tio pode castigar? Podemos levar uma lambada de um tio? Um tio tem a legitimidade de se largar ao nosso lado? Eu sei que para a maioria das pessoas estas perguntas não fazem sentido – principalmente para o King Jong-un -, mas são questões de uma pessoa que, por mais que tente, jamais as conseguirá responder.
Acho que com isto tudo já deu para chegar a uma simples conclusão: a minha família não é propriamente vasta. Para terem noção de como a minha família é pequena, nos jantares de família não é preciso ir buscar mais bancos à cozinha. Eu não tenho árvore genealógica, tenho um pau genealógico e acho que não há maneira nenhuma de ter a aceitação da comunidade cigana. No entanto, apesar de não ter tios e a minha família ser pequena, eu, se pudesse, não mudava nada. Já me disseram que é muito melhor ter tios do que não ter. Sinceramente, não há maneira de saber se é melhor ou não. Vocês, que têm, nunca saberão a sensação de não ter, tal como eu nunca saberei a sensação de ter. É como dizer: este filme que vi é melhor que aquele filme que não vi. Uma coisa é certa: eu não me importo nada de não ter tios. Sabem porquê? Porque, se tudo correr bem, vocês, no futuro, vão ter que enterrar tantos tios. É incrivelmente assustador o número de funerais que vão ter que assistir num futuro próximo. Vamos supor que os vossos pais são da mesma geração que os meus e tiveram, em média, 4 irmãos. Esses 8 tios casaram-se, dando o total de 16 tios. Vamos agora supor que a idade deles varia dos 48 aos 63. Ora, segundo os meus cálculos, de 2031 a 2046, vocês vão ter a agenda cheia de cerimónias fúnebres. Eu se fosse a vocês aderia ao cartão de pontos. É que já nem vale a pena marcar aquelas férias para Ibiza, porque antes do embarque vão receber o telefonema com as notícias. Bem, para terminar, acho que também sou capaz de acabar com uma declaração: eu, João Bastos Vieira de Melo, não tenho tios e afinal gosto de não os ter.
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