Uma casa tem que ter a harmonia que não se encontra na rua. É o local, o nosso local, o nosso cantinho no espaço cósmico. A casa foi concebida para nos acolher, para nos refugiar, para nos sentirmos revigorados. Tem que ser a nossa fortaleza entre a serenidade e o caos que encontramos fora dela. Essa serenidade seria facilmente concedida se não tivéssemos um congelador em casa. De todos os electrodomésticos que temos em casa o congelador é o que mais destabiliza a harmonia de um ser humano. O congelador tem vários factores que causam essa destabilização.
O primeiro factor é o de nunca ser grande de mais; nunca vimos um congelador que o tamanho fosse apropriado às nossas necessidades. A verdade é que também não pode ser grande de mais, porque se for, provavelmente, somos serial killers.
O segundo factor é o de nunca estar ao nível dos olhos; ou é em baixo, ou é no andar de cima, mas nunca num local de fácil acesso. Parece que foi desenhado, única e exclusivamente, para hobbits e para jogadores da NBA.
O terceiro factor é o de não ter luz própria, ao contrário do frigorífico. Aí dá para ter bem noção do que é feito este aparelho eléctrico. O frigorífico é como um restaurante luxuoso, que sempre que abrimos a porta somos inundados pela sua claridade e simpatia: “Bem-vindo de volta! Venha conhecer a gama de alimentos que dispomos para si!” O congelador não; é como uma taberna numa rua sem luz: “Olha quem é o gajo! Não consegues ver?! Pagasses tu a luz, meu sebadola! Toma lá as comidas que estão para aqui, num estado lastimável, e põe-te a andar daqui!”
Apesar destas características depreciativas nós precisamos de contar com o seu serviço. A sua utilização, na teoria, parece muito acessível: abrir e colocar/tirar os alimentos. De facto, parece ser muito fácil, mas na verdade, quando passamos para a prática constatamos que não é bem assim. Desde logo, temos problemas na fase do “abrir”. Abrir um congelador não é como abrir uma porta de um carro, ou uma porta de casa. Nestes exemplos, nós usamos sempre a mesma força para abrir essas portas; com o congelador, essa força, varia consoante a posição da Lua em relação à Terra e da Terra em relação ao Sol. Nunca sabemos a força exacta que temos que usar para o abrir; sempre que o abrimos parece que, o seu interior, guarda um tesouro escondido dos Incas: "Ok, vamos lá recolher este magnifico tesour...ah, merda...são douradinhos de pescada!" Atenção: nestas situações estamos a falar de abrir o congelador durante o dia, porque, se for à noite, a história é outra. Se alguma vez tentaram abri-lo à noite: muitos parabéns, provavelmente acordaram todas as pessoas num raio de 2 km, graças à perfeita simulação de uma avalanche do Kilimanjaro! Durante a noite tem que haver destreza, perícia e paciência, como se estivéssemos a abrir um cofre de um banco: “Calma, calma, devagar, isso…FILHO DA PUTA!!!” Apesar destas experiências há, ao menos, um consolo: estas lutas que já tivemos para tentar abrir o congelador seriam dignas de Homero as registar numa das suas epopeias.
Após o problema na fase do “abrir”, passamos agora ao problema de “colocar/tirar”. Uma das grandes virtudes para se colocar/tirar alimentos no congelador é saber conciliar isso, com a grande versatilidade em jogar Tetris: as peças têm que estar perfeitamente encaixadas. Podemos abrir o congelador e tirar umas costeletas, mas se embarrarmos em alguma coisa, pelo mais leve que seja, já não vamos conseguir fechá-lo. O congelador é o Mikado dos electrodomésticos; nem o nosso pai, que é o que organiza as malas no carro, quando vamos de férias, consegue voltar a fechá-lo: “Eu consigo colocar 4 malas de viagem num Smart, mas agora colocar almôndegas no congelador é impossível!”
De facto, já conseguimos perceber por que é que o congelador tem essa capacidade de nos rebaixar. No entanto, é preciso olhar também para esse aparelho no ponto de vista da comida: o congelador é o campo de concentração dos alimentos. Imaginem partilhar um espaço fechado, frio e do tamanho de uma gaveta das cuecas, com estrangeiros, onde sempre que alguém é escolhido nunca mais volta a aparecer. Sim, aquilo tem estrangeiros. Tem franceses, os croissants; tem
italianos, as pizzas e as lasanhas; tem brasileiros, as picanhas; tem
noruegueses, os bacalhaus. O Primo Levi bem que se podia ter lembrado de contar as experiências horríveis que passaram os feijões congelados, em Birkenau, em detrimento da sua própria experiência; mas pronto, decidiu ir pelo caminho mais simples da fama. É, por estas coisas, que sempre que a minha mãe coloca um saco de pão no congelador, eu sofro com o que eles estão a passar e ouço-os a gritar desesperados dentro da minha cabeça: “Eu pensava que tu me ias comer hoje! Por que é que compraste 6 carcaças se sabias que só comerias 2?! Não nos faças isto!”.
Como podemos constatar, vários intervenientes são subjugados por esse electrodoméstico. Bem sabemos que, no fundo, nos é útil, mas o sofrimento subjacente terá que ser tido em conta. A conservação de alimentos já causou demasiados estragos internos no nosso organismo. É altura de fazermos alguma coisa! Quantas famílias já foram acordadas por abrir o congelador? Quantas luxações do ombro foram causadas por abrir o congelador? Quantas horas foram perdidas a pensar numa maneira de encaixar as ervilhas congeladas? Quantos papos-secos já foram esmagados pelos cordon bleu? São estas questões que as gerações futuras terão que saber resolver, de maneira a que a harmonia nos nossos lares, nas nossas famílias, seja uma constante.
Como podemos constatar, vários intervenientes são subjugados por esse electrodoméstico. Bem sabemos que, no fundo, nos é útil, mas o sofrimento subjacente terá que ser tido em conta. A conservação de alimentos já causou demasiados estragos internos no nosso organismo. É altura de fazermos alguma coisa! Quantas famílias já foram acordadas por abrir o congelador? Quantas luxações do ombro foram causadas por abrir o congelador? Quantas horas foram perdidas a pensar numa maneira de encaixar as ervilhas congeladas? Quantos papos-secos já foram esmagados pelos cordon bleu? São estas questões que as gerações futuras terão que saber resolver, de maneira a que a harmonia nos nossos lares, nas nossas famílias, seja uma constante.

Muito fresca, esta posta. Estiveste bem, companheiro! :)
ResponderEliminarObrigado, companheiro. Volta sempre a este espaço imundo! .)
ResponderEliminarAhahahah, muito bom ;)
ResponderEliminarMuito agradecido, Inês. Faça favor de voltar sempre a este espaço interactivo. .)
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