I
E o Senhor Deus ordenou: “Podes comer do fruto de qualquer árvore, menos do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal.”
Adão, meio confuso, olhou para o vasto pomar no jardim do Éden, sem perceber ao certo a que árvore o Senhor Deus se estava a referir.
“Deste não podes comer de maneira nenhuma. No dia em que dele comeres, ficas condenado a morrer,” advertiu o Senhor Deus.
“Senhor Deus, posso fazer uma pergunta? A que árvore se está a referir? É que, assim por alto, estou a ver mais de vinte árvores de fruto. Será aquela apetecível macieira?” apontou Adão, um pouco a medo, para a árvore.
“Não, não. O fruto proibido é o daquela árvore ali além.”
Adão procurou decifrar o comentário vago do criador do universo. “A romãzeira?”
“Sim, a romãzeira.”
II
“Só para ver se percebi: podemos fazer tudo, comer bacon, beber cerveja, menos pegar no fruto daquela árvore?” questionou Eva, a nova personagem.
“Sim. Nada mau, hã?” constatou Adão. “Com peras, bananas, mirtilos, quem é o idiota que quereria comer uma romã? Aquilo não dá jeito nenhum para descascar.”
Eva já tinha deixado de prestar atenção, o seu olhar estava fixado na romãzeira.
“Eva?”
III
A serpente, que era o mais astuto de todos os animais selvagens criados pelo Senhor Deus, disse à mulher: “Com que então Deus proibiu-vos de comerem do fruto de todas as árvores do jardim.”
“Entendeste mal. Só não podemos comer romãs,” respondeu a Eva.
“Como assim?” perguntou, em choque, a serpente.
Adão apareceu a comer uma apetitosa e não proibitiva maça. “Como é, malta?”
“Adão, é mesmo verdade que o fruto proibido é a romã?” insistiu o réptil.
Ele ainda de boca cheia a mastigar a maçã. “Sim, é proibido. Basicamente, se comermos dessa árvore, morremos. Mas quem é que tem pachorra de comer uma romã? Ninguém me convenceria a comer uma, nem que me pagassem. Aquilo sabe a beterraba.”
“Estou lixado,” desabafou a serpente, a pensar que ninguém a ouvia.
“Disseste alguma coisa?” perguntou Adão.
“Nada, nada,” disse a serpente, já a pensar num novo plano. “Estar sempre a comer maçãs cansa um bocado, não achas, Adão?”
“Tens mangas para desenjoar,” disse Adão.
“Sim, sim,” continuou a serpente. “Mas naqueles dias de calor o que sabia mesmo bem era uma boa romã, não era?”
“Por acaso já comeste uma melancia no verão? É uma fruta tão fresca,” disse Adão enquanto atirava o caroço biodegradável da maça para longe.
“Ó Adão, não eras tu que querias ir à aula de yoga das 15h? Está mesmo a começar à entrada do jardim do Éden,” disse a serpente, a querer ver-se livre dele. “Vai indo que eu e a Eva já aparecemos por lá.”
“Não sabia que era tão tarde,” disse Adão. “Yoga no paraíso. Aí sim é que te conectas ao universo.”
O primeiro homem começou a ir-se embora. A serpente sentiu finalmente que estavam reunidas as condições para pôr em prática o seu plano diabólico, não fosse ela o próprio diabo em pessoa. Neste caso, em serpente.
“Este Adão é um prato,” disse o réptil para quebrar o gelo. “Para onde é que estás a olhar?”
Eva procurou disfarçar. “Nada.”
“É para a romãzeira, não é?”
“São tão grandes as romãs, parecem aqueles balões dos restaurantes chineses,” disse Eva com grande sinceridade, a olhar fixamente para a árvore.
“Sabias que por dentro aquilo está carregado de rubis?”
“Jura?!”
“Sim, sim. Podemos vê-la mais de perto. Vem, eu levo-te lá,” a serpente serpenteou em direção à árvore.
IV
Chegados perto da árvore da ciência, a serpente continuou com a sua estratégia. “De perto, os frutos até parecem mais sumarentos. Se tivesse, sei lá, dois braços fortes, já teria tirado duas ou três romãs.”
“Podemos esperar pelo Adão. Ele, de certeza, que te consegue apanhar uma”, disse Eva.
“Vá, não têm de ser assim tão fortes. Dois braços como os teus chegam,” disfarçou o diabo.
“A sério, esperarmos pelo Adão. Ainda há uns dias era uma costela; o meu médico de família disse-me para não fazer grandes esforços,” disse Eva a alongar um braço lentamente.
“Epá já chega: pega lá nessa merda!” exasperou a serpente.
Eva esteve tentada a responder “és pior do que o diabo”, mas podia causar mau ambiente. E a verdade é que ela queria mesmo provar o fruto. Levantando ligeiramente os braços, e sem grandes esgares de dor, Eva puxou a romã mais próxima até se soltar da árvore – tac! Aquele som do fruto a ser arrancado ecoou pelo pomar. Levantou-se uma brisa. Daquelas suspeitas.
V
“Auu! As minhas unhas! Tens a certeza de que é assim?”
“Nunca descascaste uma laranja? É igual,” disse a serpente.
“Não venhas com merdas, esta casca é bem mais dura,” falou Eva, um pouco irritada.
“Espeta bem a unha.”
“E se eu puxar aqui esta parte de cima?”
“Esquece, isso não sai,” disse a serpente.
Eva tentou de tudo: puxou aquela coroazinha da parte de cima; trincou a casca; atirou a romã para o chão. Algum resultado? Nenhum. O diabo já começava a estar com os calores, e é um tipo de animal com sangue frio.
“Filha da p…,” berrou Eva enquanto pressionava a romã com as duas mãos.
Ouviu-se um suave estalar. A fruta cedeu e surgiu uma pequena abertura.
“Ah!!!”
“Boa! Agora só tens de abri-la ao meio!”
Eva colocou os dois polegares na abertura. Uma fenda começou a percorrer ao longo do fruto.
“Está quase, está quase!” gritou Eva.
A romã abriu-se em dois, cuspindo o seu suco avermelhado por toda a parte.
“Filha da p…, estou cheia de nódoas.”
“Isso sai,” disse a serpente. “Não te preocupes.”
Eva segurava as duas partes em cada mão. O seu olhar ainda não tinha recaído no fruto, estava mais atenta às manchas.
“Só vesti uma vez este conjunto e já vai para a máquina,” desabafou Eva. Ela olhou para a romã aberta pela primeira vez. “Aaah!” soltou um grito e deixou cair o fruto.
“O que se passa?!”
“Não sabes que sofro de tripofobia?”
“Sofres?”
“Sim. É o padrão, não sei bem explicar.”
“Epá, despacha-te a comer isso. Olha lá para o fruto, não parece que tem pedras preciosas?” disse a serpente, a revelar alguma impaciência.
Eva ganhou coragem e pegou na romã. “Estou toda arrepiada.”
“Imagina que são rubis e que valem muito dinheiro.”
“Ok, isto são rubis, isto são rubis, isto são rubis,” disse Eva de olhos fechados, a tentar convencer-se.
“Está quase.”
Eva, finalmente, contemplou a romã. A repulsa foi substituída pelo fascínio. Depois, pela dúvida. “Como é que se come isto?”
“Pelo amor de Deus!”
Nem a propósito, quem é que se aproximava do pomar onde se encontravam a serpente e Eva? Esse mesmo, o criador de todas as coisas. Vinha Ele e Adão, acabadinhos de sair da aula de yoga.
VI
“Estou lixado.”
“Não te preocupes, acabas por te habituar.”
“Acho que me estiquei demasiado.”
“É mesmo assim.”
“De onde é que a conhecia?”
“A instrutora Shiva? De outros mundos.”
Sem saber o que fazer, e um bocado em pânico, Eva procurou esconder-se no meio do jardim. Para grande azar, escolheu uma árvore que tinha sido recentemente podada. Já a serpente só teve de se manter abaixada.
“Claro que para ela era fácil fazer as posições, ela tem quatro braços…”
Deus já não ouvia o queixume de Adão. Estava perplexo com o que estava a ver neste momento.
“Não acredito! Eva?!” gritou Deus.
Ao longe, ouviu-se um trovão. Provavelmente de Zeus, sempre atento a estes momentos de tensão. Eva bem tentou que os seus braços combinassem com os ramos da árvore despida, mas só acabou por fazer mais figura de parva. Deus e Adão iam-se aproximando da árvore.
“O que estás a fazer? Nós conseguimos ver-te.”
Eva imitou o som de um trovão, puxou os ramos para perto dos braços e atirou-se ao chão, a fingir que a árvore tinha sido atingida por um relâmpago. Deus está sem palavras; Adão está a fazer alongamentos. Eva continuou a sua representação de uma peça infantil: imitou o som do vento e foi rebolando para o mato mais perto para se esconder.
“Já chega, Eva. A sério.”
Eva levantou-se, como se não tivesse acontecido nada. “Já cá estão?”
O Senhor Deus disse então à mulher: “Que é que fizeste?”
A mulher respondeu: “A serpente enganou-me e eu tentei comer.”
“Tentaste?!” perguntou Deus.
“Sim.”
“Como assim?”
A serpente levantou a cabeça e entrou na conversa.
“Deus, olá, sou eu. Posso falar contigo em privado?”
Deus assustou-se. “Aaah!” e foi colocar-se atrás de Adão.
“A sério?”
“Oh, és tu,” Deus esgueirou-se da beira de Adão. “Ainda é tudo muito fresco, é normal que não me lembre de todas as minhas criações.”
“Tens uma aranha a subir-te pelo corpo,” disse a serpente.
“Tira! Tira! Por favor, tira!”
“Não acredito, tens mesmo medo destas coisas.”
Adão e Eva desviaram o olhar; Deus procurou disfarçar o desconforto e manter alguma compostura celestial. “Não querias falar comigo?”
“Sim, por favor. Falamos no sítio de sempre?”
“Falamos no sítio de sempre.”
Eles começaram a dirigir-se para uns escritórios ali ao pé do jardim. Adão e Eva não percebiam bem o que estava a acontecer.
VII
O escritório era no décimo segundo andar, num edifício espelhado com uma vista incrível 360º. Nos outros andares havia um pouco de tudo: agências de publicidade, gabinetes de advogados, consultoras e ainda uma clínica dentária, abrangida por vários planos de saúde. Assim que se saía do elevador, no décimo segundo andar, havia um grande letreiro de néon ao lado de uma porta de vidro fosco.
“GENESIS INNOVATIONS – CRIAMOS O AMANHÔ
Lá dentro, encontrava-se um mural com uma frase feita de musgo.
“FAILURE BUILDS THE FOUNDATION OF SUCCESS”
Esta frase raramente inspirava alguém, mas era impossível evitá-la até se chegar à sala dos executivos. Nesse mesmo instante, Deus e a serpente estavam prestes a começar a reunião de emergência. A sala tinha uma grande mesa retangular, rodeada por quatro cadeiras de cada lado e duas nas pontas — os seus lugares habituais. As janelas erguiam-se do teto ao chão, preenchendo um lado da sala, com um enquadramento perfeito sobre o jardim do Éden. Havia também um enorme quadro branco na parede em que se podia ler “10 despachos” a azul e “Despacho não é uma palavra um bocado forte?!?! E se fosse antes mandamentos?? 6 em vez de 10!!!” a vermelho. A reunião teve início.
“Tu sabes perfeitamente porque é que quis marcar esta reunião”, disse a serpente.
“Lá vamos nós outra vez,” respondeu Deus a revirar os olhos.
“O que queres que te diga?” disse a serpente. “Continuas a cometer o mesmo erro.”
“Fui ou não fui outra vez para um fruto?” disse Deus com algum enfado. “Os resultados estão à vista.”
“Não acredito! Tu ainda não estás convencido de que ‘fruto proibido’ é mais sonante do que ‘legume proibido’, pois não?”
“Naa… está bom assim. ‘Fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal’ tem resultado muito bem,” ironizou Deus.
“Queres mesmo ir por aí?!” via-se a serpente/diabo a ficar irritada/o. “A tua ideia original foi um nabo! Eu repito: um nabo! Tu achavas mesmo que ‘Legume de raiz tuberosa do conhecimento do bem e do mal’ ia convencer Adão e Eva a cometer o pecado?”
“Está bem, está bem…” Deus manteve a compostura. “A tua ideia de passar de legume para fruto é que foi excelente. Parece que ainda consigo ouvir o grito da Eva quando pegou no figo-da-índia.”
“Ao menos tentou pegar no fruto!” gritou a serpente. Mais uma vez, sempre atento, Zeus lançou um trovão. “Quando foi o nabo, a Eva nem mostrou interesse. E usei toda a minha capacidade argumentativa.”
“Deves ter usado, deves,” voltou a ironizar Deus.
A serpente já não conseguiu estar mais sentada, muito por causa da cadeira não ser feita para alguém da sua fisionomia. Dirigiu-se à janela e começou a olhar para o horizonte. Deus manteve-se no lugar.
“Foi nisto que nos tornámos?” disse a serpente, agora com os olhos focados no jardim. “Lembras-te quando começámos isto tudo? Lembras-te da fome que tínhamos para criar algo verdadeiramente especial? Lembras-te?!” o diabo virou-se para Deus.
“Claro que me lembro.”
“O bem contra o mal… a luz e as trevas… tu precisavas de mim, eu precisava de ti. Caraças, é uma grande ideia!”
“Eu sei.”
“Então, o que é que está a falhar? Certo, o nabo não deu; o figo-da-índia picava; a romã é difícil de comer,” a serpente voltou-se para olhar o jardim e distinguiu Adão e Eva no meio do pomar. “Temos de arranjar outro fruto para eles comerem.”
“Fruto?!”
A serpente virou-se para Deus. “Epá, por favor, não vamos voltar aos legumes. Tens de deixar cair essa ideia, já chega!”
“Certo.”
A serpente voltou a focar-se no casal lá em baixo. “Desta vez, já consegui convencer a Eva a abrir o fruto. Estamos quase lá.”
“Volto a criar outro universo?” perguntou Deus.
“Acho que é o melhor.”
“Já criámos quantos universos paralelos? Não achas que estamos a abusar?”
“Qual é o mal de criarmos mais universos paralelos?” perguntou a serpente a olhar para Deus. “Isso depois é lá com eles.”
“Está bem,” Deus levantou-se e também foi ver a vista. “Tens alguma ideia para o novo fruto proibido? Desta vez, escolhes tu.”
Por algum tempo, os dois ficaram a observar Adão e Eva, em silêncio, no alto do décimo segundo andar. Adão ainda fazia alguns alongamentos. Eva olhava para as nódoas que a romã tinha feito ao seu conjunto.
“Sim,” disse a serpente com os olhos a faiscar, como se fossem duas grandes maças vermelhas. “Acho que já tenho uma ideia para o novo fruto proibido,” e voltou-se para olhar Deus diretamente nos olhos.
VIII
E o Senhor Deus ordenou: “Podes comer do fruto de qualquer árvore, menos do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal.”
Adão, meio confuso, olhou para o vasto pomar no jardim do Éden, sem perceber ao certo a que árvore o Senhor Deus se estava a referir.
“Senhor Deus, posso fazer uma pergunta? A que árvore se está a referir? É que, assim por alto, estou a ver mais de vinte árvores de fruto. Será aquela apetecível macieira?” apontou Adão, um pouco a medo, para a árvore.
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